ouvi essa música e lembrei de voce

Ouvi essa música e lembrei de você

Por Nathalia Pandeló

 

Dia desses, arrumando os armários, encontrei alguns CDs. Empoeirados, é verdade. O tempo tem dessas coisas.

Eram DVDs e CD-Rs, daqueles que a gente comprava na loja de informática pra gravar em casa. Entre os muitos com episódios de séries que eu colecionava, havia uma mixtape que me levou de volta no tempo.

Mais precisamente, à minha festa de 15 anos. Não foi festão nem nada, eu preferi um churrasco para alguns amigos num sítio alugado. Convidei as colegas de sala, meus padrinhos, aquela coisa.

O Bruno não era um amigo próximo, mas a gente conversava bastante pelo MSN e falava sobre música. Ele era locutor na rádio local, colega de trabalho do meu então namorado e uma das poucas pessoas que eu sabia que gostava das mesmas músicas que eu. Cidade pequena tem dessas coisas.

Bruno foi ao aniversário levando esse CD de presente. Músicas que ele queria me mostrar, mas iam demorar demais para passar pelo MSN, uma a uma. Stone Temple Pilots, Pearl Jam, esse tipo de som. A lista impressa na capa trazia a tracklist e só. Nenhum feliz aniversário, dedicatória, cartão.

Ainda assim, esse foi o único presente que sobreviveu. Me lembro bem dos mimos daquela festinha. Um porta celulares que deixaria meu Nokia 3310 em pé na escrivaninha do quarto. Gloss labial. Um CD do Robbie Williams – lembram de “Sexed Up”? Alguns livros. Aquele perfume Thaty, do Boticário. Uma agenda — fazer aniversário em dezembro tem dessas coisas.

O gloss brilhou até virar purpurina; o perfume evaporou. A agenda eu enchi de prazos de provas, lembretes de trabalhos escolares, datas de começos e términos de leituras, aniversários de amigos. Os livros foram lidos e, numa mudança, acabei doando. O CD do Robbie Williams eu não queria nem ver pintado a ouro após o fim do namoro. O disco pirata, porém, ficou.

Bruno não. Dois anos depois, ele perdeu a vida em um acidente de carro. Uma menina da minha escola também, assim como outro amigo deles. Voltavam de uma festa de madrugada e colidiram com outro automóvel. As estradas de Minas não perdoam. Na minha terra, todo mundo conheceu alguém que morreu em uma batida horrenda, e os jovens são os mais ceifados.

Lembro claramente do enterro, da missa de sétimo dia. Eram coisas ainda muito recentes pra mim. A mortalidade, digo. Nessa idade, a não ser que tenha uma existência muito marcada pelas perdas, a gente ainda se acha imortal e inatingível. Dessa experiência toda, lembro que as famílias enlutadas cantavam “Gostava tanto de você”, do Tim Maia. Aquela assim:

Não sei por que você se foi

Quantas saudades eu senti

E de tristezas vou viver

E aquele adeus não pude dar

Faz sentido. Até mesmo o Bruno aprovaria essa escolha. Sentimental, verdadeira, doída. Tim Maia tem dessas coisas.

Houve uma época em que fazer uma mixtape era trabalho braçal. Fazer um CD era o suprassumo da tecnologia pra quem cresceu clonando faixas de um toca-fitas para o outro, ou esperando tocar na rádio aquela música que eu pedi usando o telefone fixo. O momento do rec tinha tudo para salvar — ou estragar — uma gravação.

A música ajudava a materializar o inominável. Uma paixonite, uma amizade, a dor de cotovelo, tudo ali, em dois rolos de fita magnética. Hoje, até o termo virou outra coisa. No rap, uma mixtape geralmente significa um projeto musical mais livre, sem a estrutura comercial e a produção elaborada de um álbum tradicional. É um meio de testar novas ideias e manter um fluxo constante de lançamentos. Embora muitas mixtapes atuais tenham produção de alta qualidade, elas costumam ser mais experimentais, sem a necessidade de seguir um conceito rígido ou estratégias de vendas.

Mas de certa forma, uma mixtape continua sendo uma declaração. Seja de um artista em ascensão, seja de uma sensação que se quer extravasar. No fim do ano, recebi do meu amigo André Felipe uma playlist, que nada mais é que uma fita reencarnada. Embora hoje seja consideravelmente fácil arrastar o mouse e clicar em “adicionar a uma playlist” no Spotify, a atenção na feitura, o cuidado na transição das faixas e o processo artesanal de criar um fio condutor entre começo, meio e fim em plena era do shuffle continuam o mesmo.

Sigo achando que música é um dos melhores presentes possíveis. Os artistas nos presenteiam com sua arte – e aqueles de nós que não somos fluentes na linguagem dos instrumentos, passamos adiante essas dádivas. “Ouvi esse álbum e lembrei de você” é, literalmente, música para os meus ouvidos e acalanto para minha alma.

Dê música de presente. Ela salva vidas — e mantém vivas as que não estão mais por aqui.

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